Guia do Mestre: mestrar não é tão difícil quanto parece

Guia do Mestre: mestrar não é tão difícil quanto parece

Situação muito comum nos grupos de RPG que eu já participei é a presença de muita gente querendo jogar, mas ninguém disposto a ser o mestre.

A resistência é compreensível, já que mestrar:

  1. pode parecer uma tarefa intimidante, pois você fica mais em evidência do que os jogadores e o jogo, afinal, dependeria muito de você.
  2. Além disso, cá pra nós, é de se imaginar que o mestre terá muito mais trabalho do que o restante do grupo.

Nessa postagem, vou tentar argumentar porque essas duas preocupações são constantemente exageradas por quem quer (ou cogita) se arriscar na mestragem.

Em seguida, apresento como enxergo o processo de mestrar uma campanha e, por fim, faço uma breve apresentação do Guia do Mestre e como você pode usar o livro.

Uma mesa de RPG depende tanto assim do mestre?

Vou começar a responder essa pergunta com uma digressão, espero que faça sentido pra você.

Há um livro clássico sobre entrevistas (“A entrevista de ajuda”, de Alfred Benjamin, 2008) em que o autor discorre sobre o nervosismo típico de quem tem sua primeira experiência como entrevistador. Perceba como a situação se parece com a de quem vai mestrar pela primeira vez.

Nesse momento você está assustado e indeciso. Só pode contar com você – você e ele, esperando do outro lado da porta. Se ao menos pudesse contar com ele… Mas você pode, acredito; e o fará cada vez mais, à medida que o tempo passar. (…) Se você aprender a confiar nele, isso o ajudará a dar-lhe a ajuda de que necessita. Demorará algum tempo aprender essa importante lição, pois nesse exato momento você está muito preocupado consigo mesmo, e tem a sensação de estar completamente só e vulnerável (p. 30).

Escritas em outro contexto, acho que essas palavras se aplicam muito bem aos mestres amadores. Saber que você pode (e deve!) contar com os jogadores para o desenvolvimento da história e desenrolar do jogo é uma verdadeira libertação.

É claro, o D&D (como qualquer RPG) depende de um grupo de participantes interessados em construir juntos um mundo de fantasia que imaginam e no qual jogam juntos. Como o mestre poderia fazer isso sozinho?

Uma vez tranquilizado sobre isso, o processo de mestragem se torna cada mais leve e até menos trabalhoso.

Veja bem, eu sequer acho que o mestre precisa saber todas as regras (mesmo porque eu as acho a parte menos interessante do jogo). Acredito mesmo que alguém pode ter todas as habilidades para mestrar uma ótima campanha, mas não ser o membro mais experiente da mesa. Sempre se pode aprender enquanto joga e um jogador mais experiente também pode servir como apoio nos aspectos técnicos.

Na verdade, um mestre com menos experiência talvez possa criar campanhas mais interessantes do que alguém mais experiente. Isso porque ele pode estar menos viciado nos formatos às vezes repetitivos e massantes que os enredos em D&D costumam tomar.

Mas o mestre precisa arbitrar. Dessa função não há escapatória. Por melhor escritas e simplificadas que sejam, sempre haverá alguma lacuna ou impasse entre os jogadores. Pode ou não pode? É assim ou assado?

Da forma como enxergo, acho mesmo que o importante nesses momentos é não se render à tentação de um debate burocrático, quase judicial. O mestre deve resolver a questão de forma clara e decidida. O grupo pode repensar depois da sessão os impasses, mas o importante no momento do jogo é fluir.

Isso se aproxima ao que muitos chamam de “regra de ouro” ou “regra zero” em RPG. Trata-se basicamente de entender que o mestre é livre para mudar, ignorar ou reconstruir qualquer uma das regras da forma como acredite que convenha para seu grupo. Outra forma de colocar é que o mestre é soberano em todas as questões envolvendo as regras do jogo. O que ele diz, vale.

Há uma longa polêmica sobre essa “regra” no mundo do RPG. Alguns acreditam que ela pode deturpar o jogo a ponto de desbalancear alguns equilíbrios (pretensamente) finamente construídos por seus criadores ou que de tanto mudar as regras, talvez seja melhor utilizar outro sistema, entre os muitos disponíveis.

Acho que essas críticas tem seu valor e são pontos a considerar, mas, sinceramente, eu não ligo. O jogo precisa antes que tudo ser divertido e fazer sentido para o grupo. O que funciona para um, pode não funcionar para outros.

E, cá pra nós, o D&D é balanceado? Uma vez atingido certo nível, o grau de destruição possibilitado pelas magias supera em muito o dos ataques físicos, por mais forte que seja o combatente. Eu sequer acho que isso é um problema, e definitivamente não significa que todos devam correr para montar verdadeiros tanques mágicos de guerra (Ou devam, na verdade. Pensando bem, quam sabe não daria uma campanha interessante?).

Meu argumento aqui é: jogue como preferir. Por mais explicadinhas que sejam as regras, por mais pessoas que você pode encontrar que insistem em um único jeito “certo” de jogar, você e seu grupo serão obrigados a fazer algumas escolhas, mesmo que não estejam cientes disso. Mas acho que se permitir a fazê-las deliberadamente pode permitir experiências mais ricas do que tentar seguir cegamente um modelo que talvez não seja o melhor para você.

“Crie mundos, não histórias”

Toda essa discussão nos leva a um ponto importante: o que deveríamos esperar de um mestre? Analisemos algumas opções:

  1. O mestre escreve uma história, da qual participam os jogadores.

    Nessa concepção, mestrar uma mesa de RPG seria quase o mesmo que escrever um conto. O escritor cria personagens, locais, tramas e tensões e desenvolve a história a partir da interação de seus elementos.

    Parece bom, mas, se fosse assim, o que restaria para os jogadores? Se o mestre já tem previsto “o que vai acontecer” ou “o final da história”, toda e qualquer trama trazida pelos personagens se torna inútil e toda jogada de dados vira mero enfeite em um enredo rígido e já desenhado previamente por um mestre todo-poderoso.

    Acredito que apenas experiências muito ruins podem sair daí. Tanto para os jogadores, que vão se tornar cada vez mais apáticos, como para o mestre, que se verá cada vez mais ansioso em suprir todos os elementos da história.

  2. O mestre joga contra os jogadores

    Essa vertente é tanto infeliz quanto comum nos grupos de RPG. Simplesmente não faça isso. O sucesso dos jogadores não é seu fracasso. Deixe que eles se realizem, que alcancem conquistas importantes, que sejam protagonistas da história e do mundo que vocês criam juntos.

    Mas dizer isso não resolve a questão. Tome mais como ponto de reflexão do que como coisa resolvida. Afinal, mesmo que concorde e esteja ciente de que isso pode ser um problema, aspectos pessoais que não controlamos podem acabar nos levando a agir dessa forma. O importante, eu acho, é uma constante postura de repensar a própria prática.

  3. O mestre cria um mundo (com seus lugares, história e personagens), com o qual os jogadores interagem

    Essa ideia é desenvolvida por Mike Shea em seu site Sly Flourish. A genialidade do argumento reside em sua simplicidade: segundo ele, um mestre deveria resistir à tentação de se perguntar “O que vai acontecer no próximo jogo?” ou “Que história eu quero contar?”. Como argumentei acima, essas perguntas apenas podem levar os jogadores a se sentirem expectadores do enredo que você criou para eles, e não protagonistas de fato da história.

    Para ele, a pergunta principal que deveriamos fazer é “O que os NPCs principais estão fazendo agora?”. Ou ainda: O que eles estão pensando agora? Como se sentem com as mudanças recentes em seu mundo? Que curso de ação consideram ou podem tomar?

    Todas essas perguntas te farão criar um mundo mais rico com o qual os jogadores podem interagir e, cada vez mais, abrir mão da ilusão de controle sobre a história, tentação típica para mestres novatos e experientes.

O Guia do Mestre

Ao contrário do Livro do Jogador e do Manual dos Monstros, o Guia do Mestre não é um livro que você se verá consultando muito no calor do momento das sessões ou mesmo em seu planejamento.

Dizer isso não significa que dizer que não vale a pena ler o livro, justamente pelo contrário. Nele, você vai encontrar uma discussão muito rica e completa sobre o processo de mestragem e construção de mundos, sobre diferentes estilos de jogo e também sobre o planejamento mais concreto das sessões e campanhas.

Exceção notável a isso é o capítulo 7 (“Tesouros”), que tem tabelas muito úteis para te ajudar a simplificar os prêmios que os jogadores conquistarão em suas aventuras. Vale a pena usá-las para não precisar inventar a roda em cada sessão.

O livro é dividido em três partes, cada uma com sua importância:

“A primeira parte ajuda você a decidir que tipo de campanha você gostaria de mestrar. A segunda parte ajuda você a criar as aventuras — as histórias — que irão compor a campanha e manter seus jogadores entretidos de uma sessão de jogo até a seguinte. A última parte ajuda você a ajustar as regras do jogo e a modifica-las para se adequarem ao seu estilo de campanha” (p. 4).

Como se percebe, o próprio Guia do Mestre é enfático em privilegiar a liberdade criativa do mestre e seu grupo durante as sessões. A regras podem ser (e, acredito, sempre serão) ajustadas e modificadas segundo seu estilo. Gosto muito disso nessa versão do D&D: você tem aí todo o passo a passo para começar a mestrar, mas também as ferramentas e aberturas para se apropriar do jogo como fizer sentido para você.

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